quinta-feira, 14 de abril de 2011

Jorge Amado e o pós-capitalismo


Nesta postagem, continuamos a série de colaborações do escritor, músico e professor Daniel de Oliveira Gomes. Ele analisa a obra "A morte e a morte de Quincas Berro d'Água".


Continuo a frase de meu último artigo, articulando sobre o filme dirigido por Sérgio Machado, que se baseia na novela “A morte e a morte de Quincas Berro d´Água”, de Jorge Amado, de 1961. Minha frase era: “Um mundo sem poesia seria indigesto.” O problema do mundo sem poesia está no fato de que saímos da era dos boêmios, dos artistas ciganos, os poetas loucos, que eram alguns excluídos, para a era da peste de Camus virtual, a era do cerco total. Como diria Jorge Amado, o capitalismo sempre se conserva... Deste modo, o pós-capitalismo será um outro capitalismo mais eficaz. É o que Saramago quis pôr em evidência em Ensaio sobre a cegueira, ou Intermitências da Morte, apesar de este autor ainda estar dúbio entre a utopia e a pós-utopia, como Jorge Amado o era. Gosto muito de lidar em sala com temas vivos como esse romance “A morte e a morte de Quincas Berro d´Água”; porque, além do pressuposto do ensino, também se abre o pressuposto da extensão, que se dará na experiência livre das salas de cinema. Vivas ou mortas, no mundo pós-capitalista, as miragens são outras; “é importante ser delicado”; ouvimos, mas quem diz isso é geralmente um bruto que conquistou um “diploma de delicatesse”; porque hoje qualquer um pode dizer qualquer coisa, e isso faz efeito, por mais contraditório que seja. Pouco importa quem fala, disse Beckett e disse Foucault. Todos queremos apenas ser parte da “lindura da vida”, que dizem ser a festa da tecnologia, porque a mídia diz isso, a vida é bela; ou seja, gaste seu dinheiro na mais nova cachaça: cirurgias plásticas e alimentação orgânica; tenha anorexia para alegria dos paparazzi; sorria, você está sendo filmado; não envelheça jamais; compre logo sua TV de plasma ou LCD... Isto está no povo! Porque tudo é uma mania, uma loucura; porque todos somos in-diferentes e o hospício é aqui fora, todos somos iniguais, isso é ser lindo, ou vivo, aqui fora: a dessemelhança do gaste o quanto puder, não acumule, é impossível.
A TV é hoje fonte imprescindível de informação, mas também a agiota da imagem; nos empresta seus valores e ficamos, longo prazo, sorumbáticos, parece que devendo alguma coisa com muito mais juros. “Um mundo sem poesia seria indigesto.” Eis o que mostra Jorge Amado, no seu romance. Vamos ver se o filme mostrará o mesmo... O capitalismo avançou em direção às formas superiores, de modo que a liberdade, mesmo pela arte ou literatura, é uma ilusão capitalista. Estou sendo um pouco calamitoso, mas, por outro lado, antes da era da TV e internet, era lindo fingir que todos eram iguais, a velha utopia da democracia francesa da sociedade igualitária. Como dizia o velho Leminski, em seus anseios crípticos, toda arte virou mercadoria depois da segunda metade do séc. XX. O senso da vanguarda era fruto da “alegria de viver”, hoje, claro, não há a mesma exultação da belle époque. O Brasil que copiava o progresso da Europa, também copiou isso tudo. Hoje, o que ocorre é que: o lindo é ser lindo mesmo que se seja feio, ou seja, a política do “se aceite do jeito que você é”; sim, porque a sociedade te aceita do jeito que você é; a coletividade como pura assimilação de linduras e feiúras, isso é o americanismo do “lindo”, “se aceite do jeito que é, mas na casca seja outra coisa, compre um ser, tenha um ser”, mais que isso, “conquiste um ser”, convença. Susan Boyle. Esse mecanismo político autônomo do qual não há como fugir. Por isso, a apatia dos alunos, igual modo no interior do Paraná, os olhos lânguidos e desesperançosos dos adolescentes do séc. XXI, a indelicadeza de alguns jovens que nem mesmo diferentes podem tentar ser: só existe a norma mesmo e quem foge dela é o anormal. Até mesmo estudar Jorge Amado já é outra coisa, hoje, do que quando eu o estudei; é ver, antes de sua beleza e delicadeza poéticas, sua anormalidade com relação à sua época, mais que isso, vislumbrar sua anormalidade com relação ao hoje. Já Machado de Assis (pai de outro famoso “Quincas”) como anomalia é mais coerente para explicá-lo. Por isso, quem sabe os longas-metragens cômicos baseados no Bruxo do Cosme Velho sejam provavelmente mais fáceis de adaptar do que um Jorge Amado. Geralmente, o associamos às telenovelas, deste as primeiras séries da antiga TV Tupi, no mesmo ano da publicação deste romance.
O pior é que o anormal é também quem não foge da norma, ou consegue voltar a ela por uma reinserção. A diferença é que o anormal que tenta fugir é pego e vai ou para prisão ou hospício ou de algum modo o castram. Se não for pego é porque este anormal não fugiu, ele foi assimilado por outra estratégia de força subjetiva. É lindo até ser feio, é vivo até ser morto, desde que não apresente perigo para o rumo que o mundo sempre segue: o fim do mundo. E aqui, submerjo nos estudos foucaultianos do poder como autonomia social, mesmo não sabendo se isto pode consistir totalmente em Jorge Amado. Mas aí está. Insanos, ou anormais ao menos, aqueles que forem às Bibliotecas descobrir a sua obra, após o filme.

****Texto escrito por Daniel de Oliveira Gomes (setepratas@hotmail.com). Ele é Professor Adjunto de Literatura no DELET, Departamento de Letras da UNICENTRO, em Guarapuava.

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