quarta-feira, 13 de abril de 2011
Jorge Amado e a pós-utopia
No filme, o ator Paulo José vive o papel de Quincas
Nesta postagem, contamos com a colaboração de luxo do escritor, músico e professor Daniel de Oliveira Gomes. Ele inicia uma série sobre a obra "A morte e a morte de Quincas Berro d'Água".
Lançado em 2010, o filme Quincas Berro d'Água (Sérgio Machado) é baseado na clássica novela “A morte e a morte de Quincas Berro d´Água”, de Jorge Amado (1912-2001). Não se trata, aqui, de uma resenha do filme, pois apenas li a novela, uma das obras-primas preferidas do poetinha Vinícius de Moraes, já traduzida até para o búlgaro. O livro que coincidentemente estava trabalhando com meus alunos de Literatura Brasileira. Não tanto pelo regionalismo baiano, mas porque de algum modo, nesse pequeno romance, Jorge Amado zomba universalmente da morte, assim, zomba do mundo. No mínimo, duas mortes estão em jogo, tanto no romance quanto nos dias atuais, a morte séria, a de cada esquina, e a outra, a da “gandaia”, da louca utopia. Com a situação sinistra do mundo atual, exatamente o que temos são os catastróficos, que temem um atirador da escola do realengo que mata criancinhas sorrindo a cada esquina; e os festivos, que já não sofrem bullying, e zombam da morte ou contrafazem-se zumbizados pelos noticiários. De todo modo, o livro mostra aquilo que em classe repito aos meus alunos da Unicentro: “um mundo sem poesia seria indigesto.” Não é uma simples frase de efeito, é um pressentimento, quem sabe, de alguém que percebe que o mundo está dando vez a outro mundo, onde o assédio gera assédio, como a morte dá vez à outra morte, em Jorge Amado. A pergunta é: que mundo virá após este? Tudo leva a crer que será um mundo pós-racional, pós-utópico, onde o homem não se sentiria inseguro pela morte, ou por precisar provar ser diferente dos “animalescos”, até porque já terá massacrado quase todas as vidas rasas do planeta. Não terá fome, porque não precisará se sustentar, toda sustentabilidade será automática; não sofreria dores e teria perdido a posição vertical (nos diz Jacques Derrida), andar será francamente uma coisa primitiva e risível; o homem não se sentirá cego, por isso, porque seus olhos serão excedidos por claridades mais potentes; sequer aparecerão bombeiros avessos para incendiar perigosas bibliotecas, como no filme Fahrenheit 451. O episódio da normalização da morte não será impetuoso, acreditam os modernos sociólogos. Lentamente, não terá o homem nem mesmo medo de que o mundo acabe, pois já terá inventado novas estratégias de sobrevivência, de assédio ao planeta, será uma nova era, sem mundo mesmo. Talvez o cinema ainda exista, quem sabe como uma instituição extrema...
Repito “um mundo sem poesia seria indigesto” não como simples exemplo de que devemos idolatrar a poesia; porque, há tempos, temos que crer na descentralização da figura tradicional do professor em prol da idéia do professor como mediador do conhecimento. No entanto, que conhecimento eu estarei a mediar nessa frase? Como expressar uma desesperança ou um sonho para alguém, num mundo pós-utópico? Bem como: qual o grau desta indigestão artística nos alunos, ou o grau da resistência, diante de um filme desses? Como avaliar as personagens de Jorge Amado que brindam o morto com o morto? O mundo me parece pós-utópico, estamos rindo da morte, zombando, zumbizando por aí, porque hoje já não podemos sonhar como antes; de modo geral, ocorre pra todos. Todos irão aos cinemas comemorar Jorge Amado, os cinemas são mesmo lugares de reencontros; ao passo que as bibliotecas são locais de isolamento, de perdição interior, onde o sonho está por se construir no processo pessoal da leitura. Ratos pingados irão às bibliotecas públicas conferir esta trama, seja o filme bom ou ruim. Temos que morrer como Quincas Berro D´Água, para sonhar... Antigamente, podíamos sonhar politicamente, por exemplo, lutar pelos sonhos até sermos banidos ou assimilados, chegava um fanático e botava um grupo de rebeldes ou desiguais num campo de concentração, os exilava, como leprosos; ou como no “Conto de Escola”, do Machado, o professor assumia o papel do nariz da verdade, botando os alunos em seus lugares de submissão, o de filhos da tradição determinista. Pois bem, trocamos o mundo da palmatória pelo das palmas. A lei não é a do silêncio é a do debate infinito.
Hoje, todos nós somos os rebelados, os diferentes, amordaçados pela ficção do cotidiano americano; soa falso falar em repressão, ninguém mais é reprimido, nem mesmo nos gestos, ou trajes, ou gírias, seja como for, não há repressão, tudo é mais homogêneo; talvez seja a era da internet, da comunicação global em tempo real, tudo no mesmo saco, porque não há como fugir da impossibilidade de utopia. Apenas a lição do Jorge Amado: brincar com a morte, fazer dela poesia. Fazer de conta que, tal qual no vídeo game, temos várias vidas. Resta-nos sonhar que, ao menos, a literatura sobreviva para a massa por meio do cinema. Quão indigesto se todo o mundo virar cinema. Pois um mundo sem poesia seria indigesto.
****Texto escrito por Daniel de Oliveira Gomes (setepratas@hotmail.com). Ele é Professor Adjunto de Literatura no DELET, Departamento de Letras da UNICENTRO, em Guarapuava.
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