sexta-feira, 10 de junho de 2011

Sergio Leone, um escultor do tempo

(Foto: obviousmag.org)

Em Era uma vez no Oeste, a distensão do tempo e a fábula


Talvez uma das categorias narrativas mais abstratas da ficção (seja ela verbal, visual ou audiovisual), o Tempo é uma incógnita para o ser humano. Da filosofia sofisticada à filosofia de “boteco”, todo mundo sempre buscou uma resposta para as angústias temporais: por que ocorrem mudanças em nossa história, em nosso “eu” interior? Como medir a passagem do tempo? Quais as implicações de nossas atitudes no presente? Por que o passado nos fascina tanto?
No cinema, o diretor que melhor soube explorar as inconstâncias e agruras do tempo foi Sergio Leone. Italiano de origem, ele se apropriou de um gênero tipicamente norte-americano – o western ou faroeste, na adaptação tupiniquim – para reinventá-lo como western spaghetti. Os três filmes que compõem a chamada “Trilogia dos dólares” - Por um punhado de dólares (1964), Por uns dólares a mais (1965) e Três homens em conflito (1966) - descobriram o ator Clint Eastwood, o “estranho sem nome”, e se tornaram referência para o cinema mundial, inclusive para os ianques (quem viu Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino, sabe do que estou falando).

Apesar da relevância desses filmes, prefiro comentar sobre outra sequência não menos importante: a “Trilogia da América”. Vistos em conjunto, Era uma vez no Oeste (1969), Quando explode a vingança (1971) e Era uma vez na América (1984) compõem um painel histórico e mitológico sobre a formação dos Estados Unidos da América. É o olhar estrangeiro de Leone sobre os mitos fundadores do western, na produção de 1969; os mitos revolucionários da luta armada, em 1971; e os mitos do gangsterismo, em 1984.


Ao recontar e reinventar a história, os mitos e os gêneros cinematográficos dos EUA, Leone conseguiu chegar a um nível de complexidade típico dos cineastas que se arriscam a trabalhar com a categoria do Tempo. Por isso, em minha modesta contribuição, ouso afirmar que a segunda série de filmes desse cineasta italiano é a “trilogia do Tempo”.

Em Era uma vez no Oeste, Leone recria os famosos arquétipos e temas do velho oeste fordiano. Estão lá: o duelo definitivo ao pôr-do-sol, o grande vilão (personificado nos olhos azuis de Henry Fonda), o mocinho movido pela vingança (a interpretação marcante de Charles Bronson), a heroína indefesa (Claudia Cardinale), as paisagens de John Ford, a trilha spaghettiana de Ennio Morricone.
No entanto, mais do que uma homenagem ao cinema fordiano e a estrelas como John Wayne, o italiano imprime outras cores a esses mesmos mitos. O que move os homens do velho oeste novo não é mais o código de honra de mocinhos e bandidos, mas sim a ambição e a engenharia capitalista. Nesse universo, os vilões usam a tática do dinheiro para vencer seus inimigos, deixando de lado as armas e a coragem. O bandido vivido por Fonda é um dos últimos românticos; o mesmo vale para o mocinho de Bronson.

Basicamente, o filme se define pelo conceito temporal da fábula (embutido no título). O “era uma vez” nos remete aos contos de fada, um espaço da lenda, do tempo imutável em que os personagens permanecem presos a uma perspectiva fixa e rasa. O filme leva o espectador a esse tempo, com seus mitos do velho oeste; mas, em seguida, propõe uma ruptura, uma transição. Assim, Leone subverte o tempo da lenda para mostrar as profundas transformações do Oeste: os valores tradicionais (honra, coragem, destreza, herói, vilão) perdem terreno para uma nova era, marcada pelos interesses capitalistas.

O mesmo ocorre em Quando explode a vingança, talvez a obra mais politizada do cineasta italiano. Seguindo a lógica do filme anterior, o mais correto seria chamá-la de “Era uma vez a Revolução”, já que é uma produção que se preocupa em discutir o fim do sonho revolucionário, encarnado nas decepções do personagem irlandês Sean Mallory (James Coburn).

Alternando imagens do passado mais radical do irlandês com seu presente desesperançoso, sua trajetória busca a redenção e o acerto de contas com sua história pessoal. É como se o personagem tentasse reencontrar seu “eu” do passado para consertar os erros cometidos em outra época. Aos poucos, o tempo mostra que a amizade e a tolerância eram mais importantes do que seus frágeis ideais revolucionários.

Por fim, o filme que fecha essa trilogia é Era uma vez na América. Novamente, o uso do tempo fabular é usado para discutir as transformações nos Estados Unidos e na relação de amizade entre dois personagens ao longo do tempo.

Se Era uma vez no Oeste refunda os mitos tradicionais do western cinematográfico e do oeste norte-americano, o Era uma vez na América reinterpreta as lendas do gangster film e do universo urbano ianque. O caminho deixado por clássicos como O Poderoso Chefão (1972) é retomado para deixá-lo nos trilhos do esfacelamento socioafetivo. Ao romantismo coppolaniano, Leone contrapõe o fracionamento temporal do homem.

No lugar dos imigrantes italianos, são os judeus que dão as cartas na formação do crime organizado pelas mãos do gângster. Sai a áurea e os valores ítalo-americanos para a entrada da loucura e do ceticismo judeu. São outros tempos e outros códigos.
No plano social, temos a corrupção, a criminalidade, a violência, o submundo, a lei seca, o tráfico de bebidas; no plano afetivo, as amizades, as frustrações, os amores, as traições.
Numa palavra, esse filme de Leone traça a história de amizade entre os personagens Max (James Woods) e Noodles (Robert De Niro) desde a infância de roubos, passando pelo domínio do crime organizado, até chegar ao desfecho melancólico, quando já estão velhos e amargurados pela passagem do tempo.
Assim como fez com o faroeste, Leone também não faz apenas um filme sobre gângsteres; mas sim um filme sobre valores universais frente à fragilidade do tempo.
Após assistir à “trilogia do Tempo”, não somos mais os mesmos em todos os sentidos. Esse é o verdadeiro cinema de Sergio Leone, um artesão do tempo e do cinema.

Um comentário:

  1. Olá,
    Tive a grata satisfação de conhecer a estes filmes contigo e, por essa razão, a única coisa que posso fazer é agradecê-lo pela experiência cinematográfica excepcional que me proporcionou!
    "Era uma vez... alguém que não conhecia o cinema de Sérgio Leone e, depois de conhecê-lo, tornou-se uma de suas fãs"!
    Abraços,
    Adriana.

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