quarta-feira, 24 de agosto de 2011

“Catatau” é a grande obra de Leminski

(Imagem: verdestrigos.org)



Obra menos conhecida de Paulo Leminski, Catatau (1975) consumiu dez anos da vida do poeta para concluí-la. Para pesquisadores como Cláudio José de Almeida Mello, professor de Literatura Brasileira da Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste), e poetas como Haroldo de Campos, é o livro mais bem acabado de Leminski.

No enredo, Renatus Castesius, espécie de protótipo do filósofo francês Reneé Descartes (1596-1650), aporta nas praias do Brasil. Diante da realidade local, seu sistema racional de pensamento entra em parafuso. Resta-lhe aguardar a chegada de outro personagem, que pode salvar seu dia.

Com quase nenhuma ação, o livro é todo estruturado a partir da subjetividade do personagem, tornando-se um desafio de leitura. Para complicar, a narrativa ainda conta com o primeiro personagem semiótico da história da literatura brasileira, Occam.

Em 2010, a editora Iluminuras lançou uma nova edição do Catatau, que manteve a imagem de capa da primeira edição: “Cenas de luta na sala de uma tumba em Beni Hasan” (Egito, c. 2000 a.C., anônimo).

Após 36 anos de seu lançamento, é uma obra que continua a incomodar a inteligência brasileira e se configurar num enigma para os leitores.


SERVIÇO

Título: Catatau (Ed. Iluminuras), 253 p.
Autor: Paulo Leminski
Preço: R$ 44,00
Onde adquirir: www.saraiva.com.br


*****Trecho da obra:
Que flecha é aquela no calcanhar daquilo? Picatacapau! Pela pena é persa, pela precisão do tiro — um mestre. Ora os mestres persas são sempre velhos. E mestre, persa e velho só pode ser Artaxerxes ou um irmão, ou um amigo, ou discípulo ou então simplesmente alguém que passava e atirou por despautério num momento gaudério de distração. Flecha se atira em movimento, ninguém está parado. Nem o cavalo, nem o cavaleiro; nem a mente, nem a mão; nem o arco, nem a flecha, e o alvo o vento leva: tiro certo. Dentiscalpium in oculo. Todo teu lado direito puxa a linha, todo o esquerdo segura a flecha. Spes! Tiro feito, volta-se à unidade perdida. Mas arcos atrás isso não é coisa que se diga, que se faça, arqueiro pouco diz. Cala-se, de hábito, porque ignora tudo na arte em que é exímio. Depois, velhos não são dados a festas. Lísbia sabatária — bazanz! Sabazii sabaia! Copaplena! Muito sabe, pouco ri. Enquanto muitos riem, os mestres a portas fechadas meditam sobre a guerra. O primeiro gole de vinho melhora o tiro, o segundo gole — só Zenão! Assim como o primeiro tiro aprimemora o segundo tiro, a segunda flecha corrige a receita. Eclipse entra no sol em frente duma flecha persa, o sol pára e Xerxes o preenche a flechas. Como viver à luz de flechas? Da arte — não se vive; ver flor, calar. E calando a boca, de assunto mudo, vamos falar de flechas persas. O assunto me muda. O silêncio, próprio de alunos, instrui. Mas só os mestres sabem calar dizendo tudo. Tudo é ainda pouco. Na gata! Acertou na gata, paragate, parassangate! Tudo não tem detalhes. Na arte, detalhe é tudo, todo cuidado é pouco em se tratando dos mínimos detalhes que lhe derem na telha. Veja um mestre, por exemplo; como se move, como se levanta, como sabe fazer bem as coisas que todo mundo sabe. Mas há mestres e mestres. Nem todo mestre é próspero. Alguns cultivam artes sutilíssimas. Esses, às vezes, não têm apóstolos. São os últimos pioneiros. Livro não adianta. O dedo do mestre é sempre mais que o centro aonde aponta, ou não então? A cara dos mestres é o modelo das máscaras. Que cara alguém terá para erguer a máscara que jaz sobre a cara dos mestres? Tem uma palavra muito boa para dizer isso mas os mestres não ensinam a falar, só a fazer. O que se pode dizer da arte nada tem que ver com ela. O mestre é onde a arte já morreu: por isso, mestres não lutam. Sempre há coisas que aprender: um pequeno truque, um meneio mais rápido, um trejeito gaiato, um grito junto. O que os mestres sabem é o que há para aprender.

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